(...)Paisagem onde se passa essa música?
Ar, talos verdes, o mar estendido, silêncio de domingo de manhã.
Um homem fino de um pé só
tem um grande olho transparente no meio da testa.
Um ente feminino se aproxima engatinhando,
diz com voz que parece vir de outro espaço,
voz que soa não como a primeira voz
mas em eco de uma voz primeira que não se ouviu.
A voz é canhestra, eufórica
e diz por força do hábito de vida anterior:
quer tomar chá?
E não espera resposta.
Pega uma espiga delgado de trigo de ouro,
e a põe entre as gengivas sem dentes
e se afasta de gatinhas com os olhos abertos.
Olhos imóveis como o nariz.
É preciso mover toda a cabeça sem ossos
para fitar um objeto. Mas que objeto?
O homem fino enquanto isso adormeceu sobre o pé
e adormeceu o olho sem no entanto fechá-lo.
Adormecer o olho trata-se de não querer ver.
Quando não vê ele dorme.
No olho silente se reflete a planície em arco-íris.
O ar é de maravilha.
As ondas musicais recomeçam.
Alguém olha as unhas.
Há um som que de longe faz: psiu! psiu!...
Mas o homem-do-pé-só nunca poderia imaginar
que o estão chamando.
Inicia-se um som de lado,
como a flauta que sempre parece tocar de lado -
inicia-se um som de lado
que atravessa as ondas musicais sem tremor,
e se repete tanto,
que termina por cavar com sua gota ininterrupta a rocha.
É um som elevadíssimo e sem frisos.
Um lamento alegre e pausado e agudo
como o agudo não estridente e doce de uma flauta.
É a nota mais alta e feliz
que uma vibração poderia dar.
Nenhum homem da terra poderia ouví-lo
sem enlouquecer
e começar a sorrir prá sempre.
Mas o homem-de-pé sobre o único pé -
dorme reto.
E o ser feminino estendido na praia não pensa.
Um novo personagem atravessa a planície deserta
e desaparece mancando.
Ouve-se: psiu! psiu!
E chama-se ninguém. (...)
Clarice Lispector